-
"Eu acho que o João vai gostar muito do teu gesto,
Ricardo."
-
"Eu também acho D.Manuela, esta surpresa para a festa
dele logo à noite deve deixá-lo surpreendido."
-
"Toma lá as chaves da casa dele, ele deixa-mas para eu
às vezes ir lá regar as plantas quando vai de férias.."
-
"Obrigado, e até logo."
A
D.Manuela é a mãe do João, um dos meus sócios, temos uma
pequena firma, eu, o João e o Paulo, bem já não é assim tão
pequena, já exportamos para grande parte da Europa. Hoje é o
aniversário do João e eu lembrei-me de preparar uma surpresa na
casa dele. Ele convidou todos os amigos para lá irem depois do
trabalho para uma festa informal, mas eu vou transformar a sua
pequena festa numa grande festa.
Por esta altura o João está a trabalhar, ficámos de nos
encontrar todos depois do trabalho no café, para irmos para casa
dele. A D.Manuela arranjou-me as chaves da casa e eu vou lá
agora preparar-lhe a festa. Cheguei. A casa do João é bastante
grande: 2 pisos, um jardim, uma garagem e uma sala enorme onde eu
vou fazer os preparativos.
Parece-me
que não está ninguém, é melhor estacionar nas traseiras, fica
mais perto da cozinha para poder tirar os sacos. Um bolo enorme,
champanhe e comida que chegue para todos os convidados, acho que
é bem melhor que o whisky que o João ia oferecer. O que é
isto? Um carro? Não acredito, ... o João??
E agora, que faço? Vou-me esconder aqui na despensa.... só
espero que ele não venha à cozinha e veja os preparativos
todos. Está a entrar... ouço falar, não está sozinho. Será
alguém que conheço? Quando estiver com o Paulo ele vai ter
muito que esclarecer! Peço-lhe para aguentar o João no trabalho
a tarde toda e afinal ele aparece-me em casa! Estão a falar
alto, deixa-me ver se consigo descobrir quem é a outra pessoa.
-
"Pois é João, a tua festa vai ser um sucesso", dizia
o outro homem, não me parece que o conheça, mas deve ser amigo
do João para saber da festa.
- "Vai ser pelo menos original..", ouvi o João a dizer,
"...onde é que já se ouviu falar de uma festa em que o
aniversariante vai matar uma pessoa?".
O quê?!? Vai quê?? Não devo ter ouvido bem, ou então apanhei
uma conversa a meio....estão-se a rir, deve ter sido uma piada.
-
"Ei! Pelo menos dá os créditos a quem merece, não és
tu que o vais matar,... sou eu! Ha! Ha! Ha!".
Não achei muita piada àquele riso, parece-me que a conversa era
mesmo a sério.
O que hei-de fazer? Eu nem devia estar aqui a ouvir estas
conversas, eu nem devia estar aqui! Se calhar estou a tirar
conclusões precipitadas, o João matar alguém? Tenho de saber.
Vou tentar aproximar-me. A sala é três portas a seguir pelo
corredor, vou tentar lá chegar sem fazer barulho.... ó meu
Deus, em que é que me fui meter, eu só vim trazer o bolo...
Aqui estou bem, acho, consegue-se ouvir bem e não me vêem.
-
"Não achas que foi uma boa ideia? Assim ninguém vai
desconfiar, na minha festa de anos morrer o meu amigo... claro
que não fui eu!!", as palavras do João pareciam-me estranhas,
nunca tinha conhecido esta faceta dele, ainda não acredito.
-
"Não te preocupes, vou fazer tudo de maneira muito
simples, não vais dar por nada, só ele..! Ha! Ha!", outra vez
aquela gargalhada, afinal é mesmo verdade, o João quer matar
alguém, porquê?
-
"Pronto, agora que já sabes onde é a casa, sabes quem
tens de matar e como?"
-
"Claro, é o teu 'amigo' Ricardo Sousa, agora como
é que não te vou dizer!"
Ricardo Sousa?!?! Ricardo Sousa sou eu! Não acredito! Deve ser
uma brincadeira, só pode ser.
-
"E quanto ao resto, está tudo tratado?", calma, eles
continuam a falar, tenho de saber mais.
-
"Está João. Para a mulher dele também está tudo
tratado, se fôr preciso estamos prontos para ela também se
juntar ao marido na 'brincadeira'". Rita! Não pode ser,
ela foi de férias, como é que eles souberam? Devem estar a vigiá-la.
-
"Óptimo, vamos ver se não precisamos de chegar a
tanto".
Tenho de fazer alguma coisa já! Surpreendo-os? Mas o outro tipo
deve ser um assassino profissional, deve andar sempre armado....
vou tentar ver-lhe a cara! É isso!
Se me chego muito, arrisco a que me vejam, vou só abrir um
bocadinho da porta ... não dá para ver, só vejo umas sombras,
devem estar sentados à mesa.
-
"O Ricardo nunca se devia ter metido na contabilidade da
empresa, esse departamento é meu, estava-se a aproximar
rapidamente dos meus negócios",
-
"Nossos negócios, queres tu dizer João, não é? Tu
forneces os camiões da empresa, mas eu é que arranjo o
produto."
Então é por causa disso? Podias estar descansado João, se
tivesse descoberto alguma coisa falava contigo primeiro.
-
"Tens razão Xico, estamos os dois metidos nisto, e logo
vamos tratar do nosso problema...", Xico! O cúmplice do João
chama-se Xico, já é um começo...
-
"Vamos embora, ainda tenho de ir trabalhar, vemo-nos
logo, certo?"
-
"Ok, venho aqui dar-te a minha prenda de anos, Ha, Ha,
Ha".
Foram-se embora, que posso fazer agora? A Rita, tenho de avisá-la,
mas, e se eles têm escutas no telefone? Não posso arriscar e
chamar a polícia, estou por minha conta. Vou pelo menos
confirmar que ela está bem, onde pus o papel com o número do
hotel? Cá está! O João não se importará que faça um pequeno
telefonema, ele que ponha na conta da empresa.
-
"Boa Tarde, queria falar para o quarto 321, por
favor!", espero que ainda não tenha ido para a praia, ou para
as compras... "Rita? Olá, como estás?", ela está bem, que
alívio.
-
"Ricardo, querido, que surpresa. Passa-se alguma
coisa?"
-
"Não, estava a preparar a festa do João e lembrei-me
de te telefonar."
-
"Pois é, o João faz anos, mas que festa é essa?"
-
"Nada de especial, lembrei-me de lhe preparar uma
surpresa."
-
"Surpresa? E não me avisas? Vou para aí hoje!"
-
"Não Rita! Não venhas! Quer dizer, não é preciso, é
uma coisa simples."
-
"Mas uma festa assim, surpresa, sem ele contar, não
achas que ele pode não gostar?"
-
"Acho que ele pretende mesmo que este aniversário seja
diferente..."
-
"Ricardo, se puder vou aí, não estou assim tão
longe."
-
"Não Rita! Deixa-te estar, não é preciso cansares-te
por uma festa, está bem?"
-
"Pronto, se não queres a minha companhia...."
-
"Não é isso... depois explico-te. Um beijo! Adeus!".
Pelo menos a Rita está bem. Vou ter de manter as aparências até
logo, continuar a preparar a surpresa. Na festa vou tentar
desmascarar o João e o Xico, e ter cuidado, muito cuidado.
São 20h00. Estamos quase todos no café, só falta mesmo o João
e uns antigos colegas da faculdade, todos os outros já
chegaram. Devem ser umas 20 pessoas, principalmente
colegas de trabalho, alguns que eu não conheço, mas nenhum se
chama Xico. Deduzo que o Xico apareça depois na casa do João.
-
"Está tudo pronto?", pergunta-me o Paulo. A surpresa
foi sendo divulgada pelas pessoas para que todos entrem na
brincadeira, hoje evitei ir ao trabalho para não me cruzar com o
João.
-
"Sim, não te preocupes."
Nesse momento vejo o João a entrar com o resto dos colegas que
faltavam.
-
"Olá a todos!", cumprimentou com um sorriso rasgado,
e recebeu os parabéns de todos, os beijinhos das meninas, os
abraços dos amigos, até que chegou a minha vez.
-
"Parabéns João! Que tenhas um dia feliz."
-
"Obrigado Ricardo, vai ser uma noite especial".
Metemo-nos nos carros e dirigimo-nos para a casa do João. Até
agora ainda não tinha notado nada de suspeito. O João tinha
estado a conversar com os convidados, como um bom anfitrião, e
nada de Xico, nem daquele riso que me ficou a ecoar na cabeça.
Vejo a casa ao longe, as minhas mão tremem, e se fugisse? Mas, e
a Rita? Não posso arriscar a que lhe aconteça alguma coisa.
Estamos todos à porta, tinha preparado tudo na sala, quando
entrarmos a surpresa vai ser revelada. O João abre a porta,
acende as luzes, e ... "Surpresa!", gritam todos em coro. E lá
estava o bolo, o champanhe, tudo exactamente como deixei, "Não
deviam", diz o João, "Não era preciso", as frases óbvias
a dizer nesta altura. Olho para a cara dele, está contente, mas
não tão surpreso como eu esperava, "Será que te estraguei os
planos João?", pensei.
A festa estava animada, toda a gente a beber e a comer os
aperitivos. Eu estava a falar com dois colegas de trabalho quando
vejo o João a aproximar-se com um sujeito que tinha acabado de
chegar. É um homem alto, bem vestido, de charuto na mão, o seu
andar fazia-me lembrar a marcha de um soldado na tropa. "Será
este o Xico?", o meu coração bate mais forte à medida que
eles se aproximam, já não consigo estar concentrado na
conversa. Olho de lado para o João e ele continua a vir na nossa
direcção. É agora.
-
"Olá Ricardo, tenho aqui uma pessoa para te
apresentar"
Virei-me lentamente, os nosso olhos cruzaram-se, tinha uns olhos
grandes, daqueles que nos olham dentro e parecem que nos lêem o
pensamento.
-
"Este é o Luís Almeida, ele está interessado em fazer
negócio connosco, se puderes falar com ele agradecia.", Luís?
Pode ser disfarce.
-
"Claro que sim, é sempre um prazer falar com novos
clientes", disse tentado disfarçar a voz da angústia que
sentia.
Nesse momento olho pela janela e vejo o carro da Rita a
aproximar-se da entrada.
Não, agora não! Rita... porque é que tinhas de vir?
-
"Desculpem-me um momento", disse a correr e
apressei-me para a garagem.
Quando abri a porta ela estava a sair do carro.
-
"Rita, que fazes aqui? Entra depressa no carro."
Tinha decidido fugir, não posso pôr a vida da Rita em perigo.
Ao entrar vejo que lá está uma pessoa, olho para a Rita com uma
expressão de interrogação.
-
"É um amigo. Ricardo, queres-me explicar o que se
passa?"
-
"Rápido, temos de sair daqui."
Conduzo depressa, quanto mais depressa nos afastarmos daquela
casa melhor.
Durante o caminho o meu pensamento vai apenas para aqueles olhos.
A Rita continua a perguntar o que aconteceu, mas neste momento
apenas quero levá-la para um sítio seguro. Chegamos ao nosso
esconderijo.
-
"Rita, que fazes aqui? O que é que eu te tinha dito?"
-
"Ricardo, quando disseste que tinhas preparado uma festa
surpresa, não pude deixar de vir, algo podia correr mal e eu
tinha de estar presente". Correr mal? O que poderia correr mal?
-
"Deixa estar, agora estamos bem, aqui ninguém nos virá
procurar."
Tinha-os levado para uma pequena casa dos meus avós nos
arredores da cidade. É a nossa casa de campo, fica situada no
meio de um bosque, o João não se lembrará de vir até aqui.
-
"Tens razão Ricardo, é mesmo um óptimo sítio. Eu não
me teria lembrado de um local melhor! É ideal."
As palavras dela intrigam-me. Nesse momento reparo no outro homem
a sair do carro.
-
"Ah! Que cabeça a minha, deixem-me que vos apresente.
Ricardo, este é o Francisco Queirós, um bom amigo meu."
"Muito prazer Ricardo, mas podes-me chamar de Xico, toda a
gente me chama de Xico, Ha, Ha, Ha!".
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