Eles estavam
em férias. Há muito tempo que o Carlos não tirava férias,
agora que pensava nisso, talvez já tivesse feito 2 anos desde
os últimos dias a que chamou férias. Mas agora tinha
conseguido juntar todos os seus amigos e estavam há já uma
semana numa cabana nas montanhas, a desfrutar o ar puro. Bem,
todos os seus amigos menos um, a sua namorada com a qual teve,
mais uma vez, uma enorme discussão. "Cuidado com as
mulheres", já a sua mãe dizia, mas Carlos sabia que a
culpa das discussões não era dela, coitada, sofre nas mãos
dele.
Passada a
primeira semana, já todos se conseguiram ambientar ao local e
já tinham ido conhecer os lugares típicos da zona, mas
Carlos não vai voltar destas férias... está decidido. Não
sabe como lhe surgiu esta ideia, se foi de repente ou se foi
tomando conta dos seus pensamentos, mas neste momento é tudo
o que sabe: estas são as últimas férias da sua vida.
Com ele
estavam 4 companheiros inseparáveis: o Luís, brincalhão e
sempre com uma piada pronta; o Vasco, talvez o mais tímido do
grupo; a Patrícia que consegue alegrar qualquer um com o seu
sorriso; e o Manuel, o verdadeiro homem das montanhas. Carlos
tinha de escolher um destes para ser o que iria pôr fim à
sua vida. Este é mais um dos seus defeitos, Carlos nunca
teria coragem de pegar numa arma e dispará-la, ele sabe que
se arrependeria no último momento, esta foi a maneira que
conseguiu arranjar para tornar a sua "ida" mais fácil, e
porque não romântica.
É claro que
não pode ir ter com eles, juntá-los na sala e dizer-lhes:
"Amigos, será que me podem fazer o favor de disparar esta
arma por mim?". Teria de arranjar uma maneira de não culpar
ninguém, mas conseguir levar a cabo a sua missão destas férias.
Mais um dia
se passou e não houve nenhuma ocasião, tinham dado um
passeio pela serra, visto duas igrejas e um moinho, foi
bonito. Estavam em casa quando o Vasco se começou a sentir
mal, uma febre que não queria passar, dores no corpo, mas
nada de muito grave, talvez sol a mais, ou uma reacção à
comida. Foi nessa altura que Carlos contou a mentira da vida
dele: "É verdade, já me ia esquecendo, hoje de manhã,
acordei mais cedo que vocês e quando dei conta, estavam dois
tipos a tentar entrar no barracão ao lado da nossa
casa...". "Sério?" perguntou a Patrícia. "Pareceu-me
que não sabiam que estava gente em casa, desistiram logo de
seguida, meteram-se num jipe e foram embora, não deu para os
assustar". "Temos de fazer alguma coisa, chamar a polícia?
Ou vamos atrás deles?", como sempre o Manuel tinha ideias
disparatadas. "Não deve ser nada, nesta altura devem estar
longe", "E se foram ao barracão em vez de virem directos
à casa, não devem ser muito espertos", brincou o Luís.
Mas a Patrícia e o Vasco não ficaram descansados: "Mesmo
assim, amanhã vamos à polícia".
Tudo correu
pelo melhor, o Vasco não melhorou e a sua história convenceu
toda a gente. No dia a seguir acordaram com a ideia de ir à
polícia, mas já tinham marcado uma excursão ao monte
S.Constantino, pelo que contam deve ter umas vistas lindas,
pelo que decidiram: "Bem, é melhor fazermos assim, como
hoje parece que não houve problemas, o Luís pode ir à polícia
só para lhes relatar o sucedido, o Vasco como ainda está com
um pouco de febre, fica em casa a descansar, o resto de nós
continua com o passeio como combinado, que acham?". Toda a
gente concordou com a ideia de Carlos, óptimo.
O
pequeno-almoço apesar de simples foi bastante completo: sumo
de laranja, café ou leite e uns biscoitos que o Luís fez, o
verdadeiro cozinheiro entre eles. Para o Vasco, o Carlos
encarregou-se de lhe fazer um chá e de o levar ao quarto.
"Vasco, toma lá para o estômago!". Enquanto o Vasco
bebia o chá, o Carlos pegou num pacote que levava debaixo do
ombro. "Umas bolachinhas, mãezinha?", perguntou o Vasco
quando viu a caixa. Carlos pôs uma cara séria à medida que
abria o pacote, "Eh pá, que é isso?!?! 'Tás maluco?!"
exclamou o Vasco quando viu a arma que estava dentro da caixa.
"Xiu, não assustes os outros! Tem calma, vou-te
explicar", e Carlos encena toda a história: "Eu trouxe
isto já para estas situações, estamos aqui sem ninguém à
volta, até à próxima cidade são no mínimo 10 minutos",
"'Tá bem, mas como é que arranjaste isso?", "Já
tenho há algum tempo, então, o meu pai era polícia. Bem o
que eu quero é que tu fiques com ela aqui já que vais ficar
sozinho", "És maluco! Só peguei numa arma na tropa, isso
é com o Manuel." "Ela está pronta a disparar, eu sei que
tu também não és nenhum atirador, mas é sempre uma segurança,
ou então eu fico aqui contigo". "Não, vão lá ao
passeio, eu nem estou assim tão mal, pronto deixa aí a arma,
fico a ser o robocop das montanhas." "Usa-a se
precisares!". O Vasco tinha sido o escolhido.
Antes de
partirem, Carlos saiu de casa por uns instantes. Estavam a
preparar um lanche para levarem no passeio quando ouviram 2
tiros. "O que foi isto?" gritou a Patrícia, "Foi lá
fora e não muito longe daqui...". "Venham depressa,
...onde está o Carlos??". Foram a correr para o pátio e
encontraram o Carlos deitado no chão. "Carlos, o que
aconteceu!?" gritava o Luís à medida que corria para ele.
"Abaixem-se, não ouviram os tiros?" gritou o Carlos.
Todos eles se encolheram e baixaram-se à beira do Carlos,
"Estás bem? Que susto nos pregaste rapaz, o que foi
isto?", "Tem calma Manuel, vamos lá para dentro", e
encaminharam-se os 4 baixados para dentro de casa. Se eles os
três não estivessem com tanto medo, podiam ter visto o
Carlos a esconder a sua arma no bolso do casaco...
Já com o
Vasco, discutiam o que se tinha passado. "Carlos, o que
viste?", quis saber o Luís, "Eu não vi nada, também só
ouvi os tiros e um barulho na mata", "Achas que foram os
mesmos que viste da outra vez?", "Não sei, se calhar, ou
então eram apenas uns caçadores, o que achas Manuel? Já que
estás mais habituado às montanhas", "Pode ser, por aqui
há muita caça... eu também acho que não deve ter sido nada
de especial, na mata acontecem sempre coisas destas", "O
que fazemos? O Vasco não pode ficar aqui sozinho." lembrou
a Patrícia. "Então pessoal! Não me digam que vão
estragar o vosso dia por causa de uns barulhos. O Luís leva o
carro e vai à cidade contar o que se passou e depois vem para
aqui ter comigo, o resto de vocês vai na mesma ao monte e
tiram umas fotografias para eu depois ver o que perdi, ok?".
Carlos sabia que o Vasco não ia deixar os colegas terem o dia
estragado por sua causa.
O Luís saiu
no carro, a contagem decrescente tinha começado, o Luís não
demorava mais de 30 minutos de ida e volta à cidade.
Estavam já
com as mochilas às costas prontos para sair, quando a Patrícia
deu o último recado ao Vasco "Não abras a porta a nínguem,
está bem?", "Humm, e se fôr uma pobre Capuchinho
Vermelho que venha dar uns bolinhos ao Lobo Mau?", gracejou
Vasco, "Deixa-te de brincadeiras, é para teu bem, nós
vimos cedo e de caminho o Luís está aí", "Está bem, não
te preocupes, divirtam-se". Carlos olhou para o Vasco e
piscou-lhe o olho, de resposta o Vasco acenou afirmativamente
com a cabeça. Carlos estava sossegado, o Vasco compreendeu o
seu sinal.
Já
caminhavam à cerca de 5 minutos por um caminho bastante agradável,
mas o Carlos não estava muito interessado na paisagem, apenas
queria decorar o caminho de volta a casa. "Por esta altura,
já o Luís deve estar a chegar à cidade, não tenho muito
mais tempo", pensou o Carlos. "Ei pá! Que porra..", "
Que foi Carlos?", "Esqueci-me do saco com o nosso almoço
em casa!", "A
sério? E agora?", "Fiquem os dois aqui que eu vou lá num
instante, não estamos assim tão longe", "Ainda é um
pedaço, podemos passar por uma aldeiazita qualquer e comer lá.",
uma boa ideia do Manuel, mas o Carlos não podia aceitá-la, e
sem dar tempo de resposta pôs-se a caminho, "Não,
deixem-se estar aqui, venho já..."., disse olhando pela última
vez para o Manuel e a linda Patrícia.
O caminho de
volta a casa parecia-lhe uma eternidade, em que pensava? Nem
ele sabia, talvez soubesse agora que tinha a hipótese de
cumprir pela primeira vez na vida, um objectivo a que se propôs.
A casa apareceu no horizonte.
À medida
que se aproximava, tirou da mochila um chapéu e vestiu um
casaco largo, o seu disfarce. "O Vasco deve estar no
quarto", pensou, e lentamente aproximou-se da janela da
sala, não queria ser visto antes de entrar, pois o Vasco
podia-o reconhecer. O seu coração batia forte. Antes de sair
ele tinha fechado as cortinas da sala, devia estar escura o
suficiente para ele não ser mais do que um vulto na sala aos
olhos do Vasco. "É agora...", mais do que nunca o coração
de Carlos batia, sentia-se vivo, tinha a certeza.
Arrombou a
janela e entrou na sala, partiu um candeeiro quando entrou, o
silêncio que se fez a seguir assustou Carlos. Olhou para a
entrada do corredor à espera do Vasco, devem ter passado uns
5 ou 6 segundos desde que entrou, mas para o Carlos foram
horas. Nada. Teria o Vasco fugido? Ou estaria com medo? Ou
simplesmente não teria ouvido? Andou pela sala fazendo
barulho à medida que se dirigia para o corredor, apenas silêncio,
de repente ouviu um barulho na cozinha, o coração voltou a
bater, virou-se rapidamente e pôs-se atrás de um armário na
sala. Mas ninguém saía da cozinha. Aproximou-se lentamente
da porta, ouviu um respirar forte, abriu-a ligeiramente e viu
dois vultos: um deitado no chão, outro sentado à beira dele.
À medida
que se aproximava reconheceu o Vasco no chão, estava sentado
com a cabeça entre os joelhos e soluçava. Viu a sua arma no
chão, o Vasco tinha disparado contra alguém. Espreitou para
o vulto no chão, não lhe conseguia ver a cara, estava com a
cabeça para baixo. Era uma figura feminina, baixou-se e com
uma coragem que só se consegue ter nestes momentos, olhou
para o rosto tombado no chão. "Luísa!", gritou o Carlos.
A Luísa era
a namorada de Carlos, após a última discussão tinha
decidido ir ao seu encontro nas montanhas para fazer as pazes.
Tinha entrado pelas traseiras para surpreender Carlos, mas
quem encontrou foi o Vasco.
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