A
hora do jantar
aproximava-se. Como sempre a algazarra era grande, é sempre
assim numa família numerosa. O pai já estava sentado à mesa,
estava a acabar o seu aperitivo e guardava lentamente o jornal.
Os filhos tomavam posição nos seus lugares, eram quatro, três
rapazes e uma rapariga, já todos adultos e separados de poucos
anos entre eles. A mãe, uma senhora simpática, anuncia o que
todos já sabiam: "Jantar!", e entra na sala com uma panela
fumegante a deixar no ar um aroma a comida, como um trilho que
temos de seguir para chegar ao tesouro.
O jantar decorria normalmente, o pai, um senhor bem
parecido, era o mais sisudo da família, sempre foi um pai e um
marido autoritário, talvez da sua própria educação, ou a vida que teve moldou-o desta forma. Comia lentamente e
escutava as conversas que se desenrolavam.
Os dois filhos mais velhos geralmente falavam de trabalho,
o facto de trabalharem juntos contribuia para isso, enquanto que
os outros dois irmãos e a mãe, contavam como tinha sido o seu
dia e falavam de todas as trivialidades que se lembrassem, o pai
esse, entrava na conversa apenas quando achava que devia. Mas não
nessa noite, neste jantar o tema principal dos quatro irmãos era
a chegada do seu tio, que iria no dia seguinte a casa deles. O
tio Manuel era irmão do pai, era um senhor mais novo que o pai,
mas muito mais antipático, ia passar uns dias à cidade e iria
ficar alojado na casa deles durante o fim de semana.
A conversa centrava-se principalmente na fortuna do tio,
era um homem bastante abastado e os irmãos gostavam de especular
o que fariam com todo esse dinheiro. Decorria uma acesa discussão
entre o Luís e o Fernando, os dois mais velhos, sobre de onde
viria tanto dinheiro.
- "Aposto que é do jogo, só pode ser".
- "Não, não pode, e se as apostas falhassem? Ia à falência
e nós nunca o vimos sem dinheiro. Deve ser do tráfico, ou então
tem umas meninas a trabalhar por conta..."
- "Fernando, não digas isso do tio.", a Cláudia, a
mais nova, sempre simpatizou com o tio, apesar do seu feitio ríspido
sempre lhe trazia uma prenda quando ela era pequena.
Nesse momento o pai interrompe a conversa.
- "Atenção a todos!", a voz do pai impunha respeito
e o silêncio logo se fez ouvir.
- "Eu e a vossa mãe temos algo para vos dizer. Como
sabem as nossas finanças não têm estado bem, eu sei que todos
contribuem da melhor forma que podem, mas as dívidas antigas estão
a começar a aparecer todas ao mesmo tempo. Vocês sabem que o
vosso tio vem cá passar o fim de semana connosco, e nós
decidimos fazer algo que é o melhor para todos nós."
- "Francisco, tens a certeza? Podiamos ..."
- "Manuela, está calada, deixa-me acabar. Como estava a
dizer, a família vai-se reunir neste momento difícil e fazer o
que é preciso, um de nós vai matá-lo!".
Os quatro irmãos entreolharam-se sem saber o que
dizer ou fazer. A mãe estava com a cabeça para baixo e olhava
fixamente para as mãos que tinha pousadas na mesa. Até que o
Fernando, sendo o mais velho, sentiu-se na obrigação de dizer
alguma coisa.
- "Pai, está a falar a sério? O que quer dizer com: nós
vamos matá-lo?".
- "É assim, o vosso tio não tem família, eu e vocês
somos os únicos parentes que ele tem, se ele morrer toda a sua
fortuna será para nós."
- "Ó pai, mas não podemos fazer isso, é assassínio."
- "Assassínio? Se não fizermos nada quem morre somos nós!"
- "Mas, e porque não lhe pede emprestado? Mãe, como é
que concordou com isto?"
A mãe não respondeu, o olhar do pai não a deixou, em
vez dela o pai falou.
- "Nunca pediria dinheiro emprestado ao vosso tio! Sabem
o que é dever dinheiro a alguém que sempre vos humilhou? Alguém
que sempre teve a vida facilitada?", notava-se o orgulho ferido
e a inveja nestas palavras.
A discussão prolongou-se por alguns minutos, mas o pai não
iria voltar atrás com a sua ideia.
- "Basta de tanta discussão! Eu e a vossa mãe achamos
que é o melhor para todos, vocês já têm idade suficiente para
compreender, por isso vocês vão participar!"
- "E como quer que o matemos? Quando ele chegar dizemos:
Olá tio! A seguir apontamos uma pistola e com um sorriso: Adeus
tio!", a ironia nas palavras do Pedro, o segundo mais novo,
expressava o clima que se tinha gerado à volta da mesa, ninguém
tinha aceite de bom grado a ideia do pai.
- "Se vocês assim o quiserem fazer.", disse o pai num
tom mais calmo. "Isto vai-se processar desta forma: vai haver
um sorteio para se saber qual de nós o vai matar, e essa pessoa
pode escolher como o vai fazer!"
- "Um sorteio? Não pode ser, isto não é uma
brincadeira, uma lotaria..."
- "Ouçam-me, o sorteio não vai ser público, a vossa mãe
tem 6 papéis, 5 estão em branco e um tem uma cruz. Ela vai
distribuí-los mas ninguém vai abrir o seu papel aqui na mesa,
quem tiver a cruz é o escolhido. Assim, ninguém saberá qual
dos outros cinco cometeu o crime e não o poderá incriminar, nem
ninguém irá pôr a culpa num dos outros, combinado?"
As conversas tinham-se tornado mais reservadas, apenas o
Luís continuava a discutir com o pai, todos os outros falavam
entre eles num tom mais calmo.
- "Chega! Manuela, distribui os papéis."
- "Pai...", a Cláudia ainda tentou demover o pai, mas
em vão. A mãe retira do avental os 6 papéis, e lá está ele,
o papel com a cruz. Dobra-os em 4 e baralha-os nas mãos, começa
a dar, primeiro para ela, depois para o pai e sucessivamente por
ordem decrescente de idades. Todos ficaram a olhar para o papel
branco que tinham agora à sua frente na mesa.
- "Agora...", o pai quebrou o silêncio, "... peguem
no vosso papel, vão para o vosso quarto e aquele que tiver a
cruz já sabe o que tem a fazer." Todos pegaram no papel e sem
dirigir uma única palavra ou um olhar ao pai, foram para os seus
quartos.
A manhã já tinha algumas horas quando todos
desceram dos quartos para o pequeno-almoço, era sábado e aos sábados
todos dormem até mais tarde, hoje não foi excepção. Estavam
todos a tomar o pequeno-almoço juntos, mas ninguém fazia uma única
referência ao que se tinha passado no jantar do dia anterior.
Conversas casuais apenas, até que o Fernando disse:
- "A que horas chega o tio?", todos olharam para ele
como se tivesse tocado num assunto tabu, depois os olhares
dirigiram-se para o pai e a mãe, à espera da resposta.
- "Deve chegar às 11h, vocês sabem que ele é
pontual.", respondeu a mãe.
E assim foi, às 11h em ponto a campainha da porta da
frente tocava. Os 6 dirigiram-se à porta e enquanto o pai a
abria, a Cláudia apertava a mão da mãe com força.
- "Bom dia a todos.", a voz forte do tio Manuel ecoou
pela sala, "Ó Francisco, continuas gordo como sempre...", a
antipatia também.
A manhã foi calma, o tio Manuel esteve a contar as suas
aventuras nas inúmeras viagens que fizera desde a última vez
que esteve com eles, até que o Luís disse a frase que colocou
um nó no estômago de todos os que estavam presentes:
- "Tio, estas férias também fui passear, quer vir ao
meu quarto ver as fotografias?"
- "Não rapaz, depois, depois. Deixa-me acabar isto.",
será que a antipatia do tio o ajudou?
O almoço e a tarde decorreram normalmente e a hora do
jantar tinha chegado. A Claúdia e o Pedro puseram a mesa com um
cuidado especial ao colocarem o lugar do tio ao lado do pai. Os
dois estavam a conversar na sala ao lado quando a mãe entra.
- "Vamos jantar?", pergunta com algum receio.
- "Espera, dá-me 2 minutos, olha trás-me o meu
aperitivo, Manuel queres um?"
- "Está bem, se não fôr do fraquito."
A mãe leva os aperitivos à sala e quando lá entra vê o
marido a mostrar a colecção de armas ao tio Manuel, entrega os
copos a cada um deles e olha com um olhar fixo para o marido.
- "Nós vamos já", foi a resposta ao seu olhar.
Estavam todos à mesa à espera quando a porta da sala se
abre, o pai sai na frente, todos o olhavam fixamente quando
ouviram:
- "Ora vamos lá ver que coisas é que vocês apresentam
para o jantar.", o tio sai da sala e vai-se sentar à mesa, uma
sensação de alívio, e ao mesmo tempo apreensão pelo que se
poderia seguir, pairava na sala.
- "É uma especialidade nossa, a Cláudia e o Fernando
ajudaram a preparar."
- "Vinho, tio?", pergunta o Pedro ao mesmo tempo que
lhe coloca um tinto no copo.
Acabaram o jantar e enquanto a mãe levantava a mesa foram
para a sala fumar, o pai estava a acender um cigarro quando de
repente dá um grito de dor e aperta as mãos contra o peito.
- "Pai, que foi?", gritou o Fernando, "... rápido
chamem uma ambulância!", mas foi tarde demais, o pai morreu
ali na sala.
Nos tempos que se seguiram nunca mais ninguém
tocou no assunto do sorteio, nem em quem teria sido o escolhido.
"Ataque cardíaco.", foi o que o médico diagnosticou, um
ataque que veio pôr um fim trágico a um fim de semana já por
ele insólito.
Com a morte do irmão, o tio Manuel começou a frequentar
mais a casa deles e a ajudá-los financeiramente. Por simpatia ou
solidão, a mãe acabou por casar com ele.
Os dias passavam, a vida tinha melhorado substancialmente
mas a antipatia do tio Manuel e o seu modo rude como tratava a mãe,
esses continuavam. Uma noite estavam os dois, o tio Manuel e a mãe,
na sala a jogar cartas quando ele faz um reparo:
- "Manuela, tu dás as cartas como um profissional, se
fosses para um casino podias enganá-los a todos."
- "Dá sempre jeito especialmente quando é necessário
distribuir a sorte ou o azar. Que tal algo antes do jantar?"
- "Claro, traz qualquer coisa para eu beber."
A
Manuela sai da sala e volta com um copo que o agora seu marido,
bebe de um só gole.
- "Hum, isto é bom, não é o que o Francisco costumava
tomar?"
- "Sim Manuel, é 'exactamante' igual ao que o
Francisco tomava."
E ao dizer isto saiu da sala agarrando um pequeno papel no
avental, já amarotado e velho, mas onde ainda se podia ver uma
pequena cruz desenhada.
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